Na sua ficção, conflui o reatar de uma herança literária que impõe certa linearidade à escrita romanesca com a assimilação de traços da narrativa contemporânea que vão de um Gabriel García Márquez ou Alex Carpentier até à novelística de Agustina Bessa-Luís, numa tendência para surpreender o sobrenatural no quotidiano da vida provinciana e burguesa, ou para transpor para a escrita romanesca o plano em que a dimensão social das relações humanas se cruza com a religiosidade, com a superstição e até com o irracional. Nos seus primeiros romances, predomina como tema a ascensão social em meio rural, protagonizada por personagens contraditórias nos seus atos, movidas por instintos e crenças, e cujo percurso acaba por pôr em causa uma realidade que se revela frustrante relativamente às suas expectativas. Sobressai ainda no estilo de Hélia Correia a atenção ao poder encantatório da palavra oral, numa escrita que parece contaminada quer pela palavra poética, quer pela tradição do conto popular.
Estreou-se na poesia, em 1981, com O Separar das Águas e O Número dos Vivos em 1982. A novela Montedemo, encenada pelo grupo O Bando, deu à autora uma certa notoriedade. Aliás, Hélia Correia revelou, desde cedo, o gosto pelo teatro e pela Grécia clássica, o que a levou a representar em Édipo Rei e a escrever Perdição, levadas à cena, em 1993, pela Comuna. Escreveu também Florbela, em 1991, que viria a ser encenada pelo grupo Maizum. Destacam-se ainda na sua produção os romances Casa Eterna e Soma, e, na poesia, A Pequena Morte/Esse Eterno Conto.
Recebeu em 2002 o prémio PEN 2001, atribuído a obras de ficção, pela sua obra Lillias Fraser, e em 2006 o Prémio Máxima de Literatura, pela obra Bastardia.
Bibliografia: Papagaios de Natal e Outros Contos, s/l, 1977; Villa Celeste: Novela Ingénua, Lisboa, 1985; O Separar das Águas, Lisboa, 1981; O Número dos Vivos, Lisboa, 1982; Montedemo, Lisboa, 1983; Soma, Lisboa, 1987; A Fenda Erótica, Lisboa, 1988; A Luz de Newton, Lisboa, 1988; A Casa Eterna, Lisboa, 1991; Insânia, Lisboa, 1996; Perdição: Exercício sobre Antígona, Lisboa, 1991; A Pequena Morte, Lisboa, 1986
(In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-02-22].
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(2010)
A história deste magnífico romance – sem dúvida um dos melhores da literatura portuguesa neste início de século – começa por ser a história de uma fascinação. A fascinação de Hélia Correia por Elizabeth Siddal (1829-1862), uma das musas dos pintores Pré-Rafaelitas, para quem posou em quadros célebres – como Ofélia, de John Everett Millais; ou Beata Beatrix, de Dante Gabriel Rossetti. Hélia aproximou-se de Lizzie pelo lado da realidade factual, biográfica. Leu todos os livros escritos sobre a modelo (e são muitos, tantos que chegam «para encher uma estante»), seguiu os seus passos, tocou em objectos um dia tocados pelas suas mãos, esteve até na cripta em que a enterraram duas vezes (no cemitério de Highgate). Uma aproximação obsessiva, digna de um doppelgänger. «Nada dela me é estranho», escreve Hélia. E pressente-se que não há na frase o mínimo exagero.
Ao contrário dos biógrafos oficiais, porém, a romancista não tem os «pulsos amarrados» pela estrita objectividade do que aconteceu efectivamente a Lizzie e às dezenas de pessoas concretas (artistas, patronos, familiares, amigas protectoras) com que se foi cruzando. Aqui, a avalanche documental é só um ponto de partida, o primeiro degrau. O resto é ficção em estado puro, um instrumento de vertigem que talvez permita compreender, como que por instinto, a verdade daquela figura feminina que existiu fora do tempo, corpo destinado a uma morbidez sublime e movido por «uma espécie de impulso para as trevas». Com a sua cabeleira ruiva flamejante, a magreza assexuada, a palidez de fantasma, a arrogância dissuasora, uma espécie de culto da doença, ela foi sempre «aquela coisa que fugia, menos uma mulher que uma ilusão».
Na verdade, Lizzie só não foge de Dante Gabriel Rossetti, esse génio impulsivo com «vocação para a rebeldia» e «perante quem todos os outros deviam inclinar-se, contemplando». Num «mundo intensamente deformado pela beleza dos destinos trágicos», eles estão condenados a convergir, consumidos por uma «energia negra» que desfoca tudo à volta: «Alguma coisa os atirara um contra o outro e, a cercá-los, estava a dança de uma fera». O que Adoecer capta, com extraordinária veemência expressiva e uma intensidade aforística digna de Agustina Bessa-Luís, é o carácter único desta relação que recupera o «mito do eterno reencontro dos amantes» (Rossetti projectava em Lizzie a Beatriz do Dante medieval) e o modo como este amor, por não ter moldura que o enquadrasse, perturbou e assustou a rígida sociedade vitoriana.
Com uma certa indisciplina formal, o romance mostra-nos o século XIX inglês em todo o seu esplendor e negrume. Assistimos ao apogeu e declínio da irmandade Pré-Rafaelita, à acção discreta das primeiras feministas e à acção nada discreta de Florence Nightingale, ao magistério do gosto exercido por John Ruskin e à influência artística de grandes escritores, como Lord Tennyson, Algernon Swinburne, Robert Browning ou Charles Dodgson (Lewis Carroll). Contudo, o foco nunca se afasta muito de Lizzie e da sua trajectória para a morte, um percurso que provoca todo o tipo de distorções e desajustes na atmosfera, como se ela fosse um corpo celeste que emite uma radiação maligna.
Em alguns momentos, a excessiva nitidez dos detalhes pode cansar o leitor, desorientá-lo. Mas esta desmesura a que temos de nos ir acomodando em nada belisca a perfeição do livro, antes a sustenta. Mais do que qualquer outra coisa, Adoecer é um prodígio de linguagem, escrito por uma ficcionista em estado de graça.
(in http://bibliotecariodebabel.com/criticas/a-beleza-dos-destinos-tragicos/)
(Ofélia, de John Everett Millais)
(Beata Beatrix, de Dante Gabriel Rossetti)