Oriundo de uma família da alta burguesia, José Carlos Ary dos Santos nasceu em Lisboa a 7 de Dezembro de 1936. Destacou-se como poeta, publicitário, autor de poemas cantados, declamador, criador de textos de revista e foi um cidadão politicamente comprometido antes e depois do 25 de Abril. Iniciou a sua escrita literária aos 14 anos, no mesmo ano em que a sua mãe morreu e que a sua família lhe publicou alguns poemas. Aos 16 anos surgiu o primeiro reconhecimento da sua escrita, quando os seus poemas foram seleccionados para a Antologia do Prémio Almeida Garrett. Por essa altura, Ary dos Santos decidiu abandonar a casa paterna e a família, passando a exercer os mais variados ofícios, sem nunca abandonar a escrita. Em 1963, publicou o seu primeiro livro de poemas, A Liturgia do Sangue. 1969 é outro ano decisivo na sua vida: filiou-se no PCP e deu início à sua actividade política. Reconhecido pela sua participação activa e pela apaixonada e corrosiva intervenção, demarcou-se nas sessões de poesia do então intitulado "canto livre perseguido". Autor de mais de seiscentos poemas para canções, Ary dos Santos fez no meio artístico muitos amigos. Tornou-se conhecido devido a ter participado diversas vezes em festivais de RTP da Canção. São da sua autoria Desfolhada Portuguesa (1969), Menina do Alto da Serra (1971) e Tourada (1973), canções que arrecadaram o primeiro prémio em diferentes edições do referido festival. A 29 de Março de 1973, Ary dos Santos, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e José Jorge Letria, participam no I Encontro da Canção Portuguesa, no Coliseu dos Recreios de Lisboa. Este evento foi rodeado de forte aparato policial, até porque a poesia de todos estes autores, sendo de cariz interventivo, constituía uma forte arma contra o regime vigente, na medida em que o denunciava em muitos aspectos. O poeta morreu a 18 de Janeiro de 1984, quando preparava um livro autobiográfico intitulado «Estrada da Luz-Rua da Saudade» e a edição de dois livros de versos, “Trinta e Cinco Sonetos” e as “Palavras das Cantigas”.
Da sua obra destacamos:
1953 - Asas 1963 - A Liturgia do Sangue 1964 - Tempo da Lenda das Amendoeiras 1965 - Adereços, Endereços 1968 - Insofrimento In Sofrimento 1970 - Fotos-grafias 1970 - Ary por Si Próprio 1973 - Resumo 1974 - Poesia Política 1975 - Lllanto para Alfonso Sastre y Todos 1975 - As Portas que Abril Abriu 1977 - Bandeira Comunista1979 - Ary por Ary 1979 - O Sangue das Palavras 1980 - Ary 80 1983 - Vinte Anos de Poesia 1984 - As Palavras das Cantigas 1984 - Estrada da Luz 1984 - Rua da Saudade
A nossa selecção de poesia de José Carlos Ary dos Santos:
KYRIE
Em nome dos que choram, Dos que sofrem, Dos que acendem na noite o facho da revolta E que de noite morrem, Com a esperança nos olhos e arames em volta. Em nome dos que sonham com palavras De amor e paz que nunca foram ditas, Em nome dos que rezam em silêncio E falam em silêncio E estendem em silêncio as duas mãos aflitas, Em nome dos que pedem em segredo A esmola que os humilha e os destrói E devoram as lágrimas e o medo Quando a fome lhes dói. Em nome dos que dormem ao relento Numa cama de chuva com lençóis de vento O sono da miséria, terrível e profundo, Em nome dos teus filhos que esqueceste, Filhos de Deus que nunca mais nasceste, Volta outra vez ao mundo!
PORTUGAL RESSUSCITADO
Depois da fome, da guerra da prisão e da tortura vi abrir-se a minha terra como um cravo de ternura. Vi nas ruas da cidade o coração do meu povo gaivota da liberdade voando num Tejo novo. Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido Vi nas bocas vi nos olhos nos braços nas mãos acesas cravos vermelhos aos molhos rosas livres portuguesas. Vi as portas da prisão abertas de par em par vi passar a procissão do meu país a cantar. Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido Nunca mais nos curvaremos às armas da repressão somos a força que temos a pulsar no coração. Enquanto nos mantivermos todos juntos lado a lado somos a glória de sermos Portugal ressuscitado. Agora o povo unido nunca mais será vencido nunca mais será vencido.
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Poeta Castrado, Não!
Serei tudo o que disserem por inveja ou negação: cabeçudo dromedário fogueira de exibição teorema corolário poema de mão em mão lãzudo publicitário malabarista cabrão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não! Os que entendem como eu as linhas com que me escrevo reconhecem o que é meu em tudo quanto lhes devo: ternura como já disse sempre que faço um poema; saudade que se partisse me alagaria de pena; e também uma alegria uma coragem serena em renegar a poesia quando ela nos envenena. Os que entendem como eu a força que tem um verso reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso: Da fome já não se fala - é tão vulgar que nos cansa - mas que dizer de uma bala num esqueleto de criança? Do frio não reza a história - a morte é branda e letal - mas que dizer da memória de uma bomba de napalm? E o resto que pode ser o poema dia a dia? - Um bisturi a crescer nas coxas de uma judia; um filho que vai nascer parido por asfixia?! - Ah não me venham dizer que é fonética a poesia! Serei tudo o que disserem por temor ou negação: Demagogo mau profeta falso médico ladrão prostituta proxeneta espoleta televisão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!
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Original é o poeta que se origina a si mesmo que numa sílaba é seta noutro pasmo ou cataclismo o que se atira ao poema como se fosse um abismo e faz um filho às palavras na cama do romantismo. Original é o poeta capaz de escrever um sismo.
Original é o poeta de origem clara e comum que sendo de toda a parte não é de lugar algum. O que gera a própria arte na força de ser só um por todos a quem a sorte faz devorar um jejum. Original é o poeta que de todos for só um.
Original é o poeta expulso do paraíso por saber compreender o que é o choro e o riso; aquele que desce á rua bebe copos quebra nozes e ferra em quem tem juízo versos brancos e ferozes. Original é o poeta que é gato de sete vozes.
Original é o poeta que chegar ao despudor de escrever todos os dias como se fizesse amor. Esse que despe a poesia como se fosse uma mulher e nela emprenha a alegria de ser um homem qualquer.
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A máquina de escrever
Meu amor silabado minha esdrúxula meu acento tão grave que me abre minha rosa dos ventos minha bússola minha vírgula tola meu sentido reticências parágrafo gemido A caído na tecla do ouvido E incerto dois espaços parágrafo deserto I sorriso mundano que é preciso O círculo fechado U murmúrio atento e obrigado
Meu carreto de sonhos meu endereço retrocesso paragem recomeço minha caixa postal sem nada dentro minha resposta paga TEMPO E VENTO meus dois pontos de angústia CARNE E ÁGUA minha letra dobrada MAR E MÁGOA meu ditongo de sono PÃO E CÃO meu açaimo de frases de palavras agastadas batidas desgastadas ditadas digitadas agitadas pela dança guerreira dos meus dedos. Minha letra maiúscula de MEDO tabulador da minha solidão.
Minha aspa dos olhos minha infância minha última cópia da verdade til subtil caindo no papel pelo trema abolido da saudade.
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Da minha torre de Narciso
Ao sol, ao vento, à música, levanto Esta voz que não tenho. A Deus imponho A obrigação de me escutar o canto E entender o que digo e o que sonho.
A mim me desafio. Aos outros ponho A condição de me odiarem tanto Que não descubram nunca o que suponho O meu secreto e decisivo encanto.
Contra o que sou me guardo e quando oiço Falar do que pareço, posso então Encher o peito de desprezo e riso.
Pois só eu me conheço e só eu posso Subir até àquela solidão Onde me incenso, amo e realizo.